O que é a gastronomia hoje?
A “crise de confiança” na indústria gerou a moderna “angústia alimentar”
Carlos Alberto Dória
Quando surgiu A fisiologia do gosto (1825), de Jean Anthelme Brillat-Savarin, a gastronomia era cogitação de um pequeno círculo de pessoas, acostumadas a uma vivência aristocrática que incluía rituais de comilança ligados à caça, aos produtos da estação e aos melhores vinhos que então se fazia. Mas o livro de Savarin, além de ser uma obra de vulgarização científica, como tantas outras “fisiologias” então publicadas, encerrava um recado importante para a França: já não seria mais necessário ter “sangue azul” para se comer bem, pois bastava ter dinheiro e cultura culinária – ele pensava na burguesia nascente – para poder desfrutar do melhor, a exemplo do que a nobreza fizera até a Revolução Francesa (1789).
O livro ensinava o que seria, a partir de então, a tal “cultura culinária”. Basicamente uma nova atitude diante do mundo comestível, que consistia em desenvolver critérios para reconhecer “o melhor” entre alimentos únicos ou assemelhados, sabendo prepará-los e consumi-los, levando em conta, ainda, a situação social do consumo. Essa atitude, que nasce como uma atividade comparativa e tendo como critério decisivo o hedonismo, só poderia ser de caráter público, pois, nela, de pouco valem os critérios individuais ou juízos desenvolvidos e guardados no seio de uma família; era necessário, acima de tudo, o reconhecimento público das virtudes do alimento ingerido. Se não fosse público, como tomá-lo como signo de distinção social? Desde cedo, portanto, a gastronomia burguesa apresentou uma vocação para estar associada aos restaurantes, mais do que aos palácios.
Passados quase duzentos anos, a gastronomia desempenha um papel completamente novo na sociedade. Tornou-se um tema cultural tão importante quanto a moda, a sexualidade, a violência. É reivindicada como aparentada às artes, à simples nutrição, ou mesmo aos negócios. Sua assombrosa vulgarização parece exigir de cada um de nós que saiba explicar, a qualquer momento, afinal por que escolheu comer determinada coisa e não outra.
Lucien Karpik (L´économie des singularités, Paris, Gallimard, 2007), critica a incapacidade da economia clássica para explicar os fenômenos da escolha – os serviços profissionais, as obras de arte, a alta culinária, o grande vinho, os bens de luxo, o turismo, numerosos produtos da indústria cultural, certos bens do artesanato e modalidades especiais de conhecimento – asexpertises. Ele se detém especialmente na análise da escolha dos vinhos que, após a Segunda Grande Guerra, tiveram sua valorização ligada a procedimentos como os leilões, que lhes conferiram a aura de “obras de arte”. E é uma atitude assemelhada o esforço de marketing, hoje tão comum, para apresentar um simples azeite, arroz, salmão ou o que seja como “gourmet”. Portanto, não basta ler Savarin para nos situarmos no mundo moderno. É preciso reconhecer que o tratamento da alimentação mudou e hoje se dá, simultaneamente, em três planos distintos.
Em primeiro lugar a culinária, que nos remete ao conjunto de transformações materiais por que passam as matérias-primas alimentares até serem consumidas, incluindo tecnologias, tabus alimentares etc; em segundo lugar, a gastronomia, entendida como aquele procedimento comparativo que indica as melhores formas de tratamento de um determinado produto, dentro de uma determinada sociedade ou grupo com uma configuração de gosto particular; em terceiro, a gastronomização, que é a projeção dos valores associados à gastronomia no território do marketing e demais argumentos de venda de um produto alimentar.
A ciência, sem dúvida, pode nos socorrer no entendimento dessa tripla dimensão da alimentação. O conhecimento da culinária depende da compreensão dos processos físico-químicos que se passam dentro da panela. Ele se desenvolveu muito associado ao avanço da indústria alimentar e, nas últimas duas décadas, ocupou também o terreno do “artesanato”conforme praticado nos restaurantes e, por imitação, nos lares dos mais aferradosgourmets. Já a gastronomia se desenvolveu nos últimos trinta anos, a par com os novos conhecimentos da fisiologia humana, mostrando como o consumo alimentar, além do paladar, mobiliza os outros quatro sentidos de modo a produzir uma complexa noção de “gosto”, enraizada na nossa psicologia. Por fim, a gastronomização é objeto de disciplinas como a semiótica, mostrando como aquilo que é percebido pelos sentidos compõe o moderno signo alimentar que se expressa em vários domínios, notadamente o marketing e a publicidade.
No entanto, nem sempre foi assim, e a grande mudança de status do comer no mundo moderno, pondo em destaque a qualidade do que se ingere em vez da simples quantidade, se deveu – segundo ensinam sociólogos como Jean-Pierre Poulain – à crise de confiança na indústria alimentar. Ela, que se mostrava tão segura até os anos 1980, vendendo-se como a única garantia de qualidade para a alimentação nas sociedades de massa, teve sua credibilidade corroída a partir do episódio conhecido como “vaca louca” (encefalopatia espongiforme bovina), surgida na Inglaterra por conta do modo de alimentação e manejo dos rebanhos, submetendo-os ao canibalismo, gerando o mal que, acredita-se, poderia ser transmitido aos homens e outras espécies animais.
Ora, a “crise de confiança” na indústria gerou, em contrapartida, a moderna “angústia alimentar”, fruto da incerteza sobre a qualidade do que comemos, e as respostas dadas a essa “angústia” foram inúmeras nos últimos trinta anos. A mais importante foi dar maior transparência ao processo de produção dos alimentos, através da certificação publicamente acreditada, de origem e formas de produção. O label rouge, a produção dita “orgânica”, a “sustentabilidade”, a garantia de algo entendido como “natural” (isento de agrotóxicos, antibióticos etc.) foram todos expedientes adotados pelos produtores para minimizar a “angustia alimentar”, rompendo seu caráter de fatalidade e, ao mesmo tempo, criando alternativas de escolha, ou nichos gastronômicos, que, por sua vez, a gastronomização sabe tão bem aproveitar nos tempos atuais. Desse modo, fecha-se a conexão moderna que liga, de forma indissociável, a culinária à gastronomia e esta, à gastronomização.
Pelo lado dos consumidores, desenvolveram-se várias estratégias de autodefesa, sendo notável a dietificação da alimentação cotidiana. Uma tendência moderna é a identificação forte dos indivíduos com ideologias alimentares de cunho religioso (vegana, por exemplo), de orientação “natural”, social (“sustentável”), calórica, ou estética (“gourmet”), além da identificação dos produtos com os locais onde foram produzidos (“terroir”). Assim, o mercado de massa, geral e indiferenciado, típico da produção fordista do pós-guerra, cede passo à forte “nichelização” do consumo do dia a dia. Como consumo é também produção, as duas pontas do processo ajustam-se como a mão e a luva.
Na medida em que as ideologias dieticistas ampliam sua vigência, reforça-se a necessidade de novos conhecimentos por parte dos consumidores. Desde a organização de hortas urbanas, que exigem conhecimentos de agricultura, aos cursos de enologia, um novo mercado vigoroso vai se erigindo para oferecer, aos consumidores ávidos, a porta de acesso a novas práticas que convergem todas para a mesa. No fundo, são as práticas de incorporação dos alimentos que estão em questão, pois é um traço universal em nossa cultura – e Savarin expressou isso com clareza – a crença de que somos o que comemos. Acaso a eucaristia também não corresponde a essa ideia-mãe?
Entende-se, assim, por que os chefs de cozinha, profissão secular, se tornaram, quase que do dia para a noite, essa espécie de sacerdotes modernos a nos dizer o que é melhor comer. Manipulando – cada um à sua maneira – os valores sociais ligados ao bom, ao agradável e ao belo, fazem da busca do reencantamento do mundo uma aventura cultural sem precedentes na história. Eles estão a nos dizer que, fora da gastronomia, não há salvação; que a incorporação é, hoje, um risco tão grande que é melhor entregar-se, de corpo e alma, a esse novo culto. E se levarmos em conta que o comer “fora de casa” é uma força extraordinária e crescente, talvez não haja outro remédio. Afinal, quando desaprendemos como cozinhar, renunciando ao lar, entregamos nossa alma ao mercado. É preciso aprender a lidar com isso.
Felizmente, aqueles que se interessam por estudar o fenômeno moderno da gastronomia – e não só usufruir dessa diretriz hedonista da moderna culinária – já possuem um instrumento bastante amplo e eficaz, que é o recém surgido Dictionnaire des cultures alimentaires (PUF, 2012), coordenado por Jean-Pierre Poulain. Essa obra, que reúne a produção de 162 especialistas nos mais diversos ângulos da alimentação, através de 230 artigos, permite ao leitor varrer inúmeros assuntos seus conhecidos, em abordagens sempre criativas, ou absolutamente inéditos. O livro representa um novo grau de maturidade das “ciências da alimentação” que ganharam grande impulso justamente através dos estudos pioneiros de Jean-Pierre Poulain e de Claude Fishler – ambos orientados academicamente por Edgar Morin nos anos 1970.
Sociologias da alimentação (UFSC, 2004) é talvez o livro de Poulain que mais fortemente influenciou os estudiosos das humanidades que se dedicaram ao tratamento moderno da alimentação em seus múltiplos contextos sociais. Além disso, num percurso criativo, Poulain conseguiu restabelecer os nexos perdidos entre os estudos modernos da alimentação e as preocupações já enunciadas nas obras dos clássicos (Émile Durkheim, Georg Simmel etc.). Desse modo, os últimos quarenta anos não correspondem apenas ao período de definição de um novo lugar para a alimentação em nossas vidas; também é o tempo decorrido de desenvolvimento das “ciências da alimentação” de modo a não ficarmos entregues a um voo cego que devore nossas melhores energias para entender o que está ocorrendo à nossa volta.
Matéria compartilhada da Revista Cult.