Um legítimo quintal mineiro

Um legítimo quintal mineiro

Manhã de sexta-feira. Arapuá, Alto Paranaíba, Minas Gerais. Logo cedo, por volta de oito horas da manhã, saímos da cidade de Carmo do Paranaíba, região oeste do estado de Minas Gerais com destino à estrada. Márcio, o taxista, se encarregou de nos levar (eu, Rafael e Valdete) até o município de Arapuá, a 30 km do Carmo. O pacato lugar, incrustado no Alto Paranaíba, está escondido em um vale cercado por montanhas, palmeiras típicas do cerrado mineiro e imensas plantações de café.

Ali é o refúgio de Cléverson Martin, companheiro de Valdete, anfitrião e cozinheiro do dia. Com reputação gastronômica digna de fama internacional, Cléverson ou simplesmente “Clérzinho”, é um daqueles genuínos cozinheiros ligados à terra. Com um envolvimento enraizado nos aromas, sabores e temperos que o quintal da sua casa consegue lhe oferecer, ele transforma aquele lugar no verdadeiro oásis da boa e verdadeira gastronomia. Entre árvores, mudas de ervas, pimentas dos mais variados tipos e cores, raízes, verduras, legumes e até mesmo flores comestíveis, Clérzinho mantém todo o local pronto para satisfazer os seus anseios culinários.

Diamantes a Procurar

Clérzinho (Foto: Lucas D’Ambrosio)

Dias antes, em viagem pelo norte de Minas, Rafael fez questão de trazer para Clérzinho, que é seu padrasto, um Dourado – pescado no Rio São Francisco nas imediações da cidade de Pirapora. Predador natural das águas doces do Velho Chico, o exemplar de quase cinco quilos, chegou com enorme gosto nas mãos do nosso cozinheiro. E foi ali, no quintal de sua casa, que iniciaram os preparativos para o almoço daquela feira de sexta.

Após abrir uma garrafa de cerveja, preparar o seu cigarro de palha acompanhada do tradicional fumo de corda, típico de MG, Clérzinho iniciou a limpeza do dourado. Entre as sombras das árvores, a trilha sonora vinha do quarto de músicas, através das janelas que se abriam diretamente para a mesa em que estávamos. Para aquela tarde, um pouco de “Help” e “Proud Mary” entoaram os sons da receita.

Diamantes a Procurar

Quintal (Foto: Lucas D’Ambrosio)

A alquimia de Clérzinho

Diamantes a Procurar

Clérzinho (Foto: Lucas D’Ambrosio)

Com uma delicadeza e paciência de mestre, o peixe começava a perder sua forma natural para assumir os contornos do alimento. Utilizando uma pequena e antiga faca, amolada em pedra sob a água, todas as escamas foram sendo retiradas de maneira cirúrgica, evitando assim, que a pele do peixe fosse machucada. Depois, separou a cabeça do corpo do animal e a reservou para o pirão – que iria acompanhar o prato principal.

Com o peixe totalmente limpo, ele preparou um chá de sálvia. Sem deixar a água ferver, jogou folhas da planta colhidas na hora e deixou com que o aroma, o sabor e as cores fossem transferidos para a água morna. No peixe aberto em uma travessa e com sua pele voltada para baixo, despejou aquele chá em cima da sua carne branca. Enquanto virava o bule com uma mão, utilizou um coador em formato de cone para separar o líquido das folhas da erva. Ele contou que o interessante é deixa-lo descansando nesse chá, de um dia para o outro. Após reservar o dourado no chá, levou a cabeça para o cozimento em água e sal para o preparo do pirão. Nele, além do peixe, utilizou também pimentão, tomate e outras ervas para o tempero.

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Enquanto o dourado mantinha seu descanso no chá, Clérzinho e Valdete começaram a preparar os demais acompanhamentos para o prato principal. Primeiro, ele me mostrou a famosa fava. Parecendo um feijão, ela é retirada de um pé que mantém “ali fora”. Depois de cozinhar os grandes e brancos grãos, ele juntou tomate e pimentão picados. Uma salada de couve flor também não perdeu a hora e nem a ocasião. Em um pilão de madeira retangular, com uma abertura circular na parte superior, Clérzinho mostrou como processar o legítimo açafrão da terra. Depois de colher com uma enxada nos fundos de sua casa, as raízes sujas de terra se transformam em pequenos “diamantes” amarelos, com tons alaranjados quase dourados, nas mãos daquele alquimista.

Diamantes a Procurar
Com uma pequena faca, ele fatiou a raiz que mais se parecia um misto de cenoura com batata. “Se não tiver cuidado, você sai com o corpo totalmente amarelo”, comentou o cozinheiro ao processar o açafrão. A iguaria possui um sabor inigualável que iria acompanhar o tradicional arroz branco (que logo deixou de ser branco). Depois de um tempo, o peixe foi levado ao sol para secar durante um tempo. Após a secagem, um banho de azeite extra virgem em toda a carne aberta do dourado. Aplica-se, também, o sal através de uma massagem feita com as mãos em toda a carne do peixe. Para finalizar, ramos inteiros de funcho são colocados sobre a carne que logo é colocada no forno. No pirão, após o cozimento da cabeça do peixe, Clérzinho separou os ossos da carne. É feito uma mistura com farinha de mandioca para finalizar a receita do acompanhamento, que é indispensável.

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Nessa hora já estávamos acompanhados da “Tia” Landa e do seu marido Léo. Depois de boas conversas, algumas garrafas de cerveja e muito aroma espalhados por toda a casa, a mesa foi posta. No prato, arroz com açafrão, purê de cará com beterraba, salada de alfafa com tomate, pimentão e flores silvestres, salada de alface, rúcula, espinafre frescos e couve flor já estavam à espera do protagonista daquele dia. Finalmente, o dourado é servido, os pratos distribuídos e o silêncio revertidos nos cantos de seriemas que deram o tom necessário para a degustação daquela tarde, em um legítimo quintal de Minas Gerais.

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28 de julho, 2016.
Texto e fotos por Lucas D’ Ambrosio.

lucas

Estudante de Jornalismo, da UNA. Despertou o interesse e os estudos na fotografia no ano de 2014. Repórter e fotojornalista do Jornal Contramão, atua também de maneira autônoma, realizando reportagens envolvendo questões sociais, políticas, culturais e humanas. Possui trabalhos publicados para mídias de produção independente e portais online como, a Vice Brasil, Imersão Latina e Jornalistas Livres. Residente na cidade de Belo Horizonte fundou em 2016, ao lado de outros três fotógrafos, o coletivo de fotografia “Sô Fotocoletivo” que possui atuação no fotojornalismo e na produção de projetos autorais.